► Período de Máximo - 2007









Período de Máximo

02 Jun a 14 Jul, 2007



Galeria Nuno Centeno
Porto




Alterne // Óleo s/tela // 2007



Borodine // Óleo s/tela // 2007



Piotr Motel // Óleo s/tela // 2007

Período de Máximo
Num olhar breve, é a penumbra que envolve este conjunto de telas que se revela como primeira evidência. Mas de que trevas nos falam estas pinturas? O que representam estas paisagens nocturnas de Isabel Ribeiro? Será a ausência de luz apenas uma opção formal? Ou resultará  de uma circunstância física e temporal?

Uma leitura mais atenta revela símbolos de índole social e política: a nomeação, por um lado, da figura tutelar do pensamento anarco-comunista e, por outro, a representação de cenários interiores e exteriores onde a forma de intervenção humana é sugerida como o centro da potencial interpretação. Compreender de que forma se cruzam Piotr Kropotkine e o emigrante que regressa à terra natal poderá ser um exercício elucidativo para entender as relações aparentemente obscuras entre as telas.

Kropotkine inova no pensamento anarquista da sua época por assentar as suas teorias no carácter científico da moral. Optimista incondicional quanto à sociabilidade humana – a par da de todas as outras espécies – Kropotkine entendia que a moralidade precedia da solidariedade, assente esta na própria natureza do indivíduo e na consciência de que o seu próprio bem e o bem da espécie são coincidentes e indissociáveis. Esta solidariedade – entendida como instinto social natural do homem – transformada em hábito e associada ao desenvolvimento de sentimentos de simpatia e de regras de cordialidade para com o outro, estaria na origem da moral humana. Kropotkine defendia que a moralidade surgiria naturalmente no homem assim que os seus opressores o libertassem do manto de ignorância com que o cobriam, sem que para tal fosse necessário recorrer a qualquer tipo de autoridade, religiosa e metafísica incluídas. O caminho estaria livre para um projecto de educação das massas, permitindo o acesso à informação e proporcionando conhecimento. Uma vez livre, o homem não necessitaria de nenhuma forma de submissão para conviver em sociedade e o instinto de sociabilidade humana desenvolver-se-ia então plenamente.

Poder-se-á desde logo associar esta liberdade evolucionista, assente na educação e na transmissão de informação, a uma luz que inspira a condição humana. Mas de que forma se efectiva esta evolução, que é, ainda que em prol comum, puramente individual? Confiante na sua capacidade inata de cooperar com o próximo, será o homem realmente capaz de conduzir a sua própria vida no sentido de se rever em conceitos como “Faz aos outros aquilo que querias que te fizessem a ti nas mesmas circunstâncias”[1]?
Estes trabalhos de Isabel Ribeiro falam de transfiguração. Imagética, mas igualmente humana (individual e social). E do cruzamento de representações a artista constrói aquilo que poderemos entender como uma crítica da moral: se a transição individual para um plano iluminado se pode fazer por meio da educação e do conhecimento, ela é muitas vezes entendida como possível através de uma alteração de estatuto socio-económico. Ao mesmo tempo, a sombra pode aqui assumir um papel representativo do que será uma necessidade social de, num ou noutro momento, transfigurarmos a nossa própria representação.

E se Kropotkine, em determinada fase da sua vida se vê obrigado a adoptar um pseudónimo (Borodine) para transmitir e divulgar os seus ideais, a figura do emigrante pode aqui servir para ilustrarmos a necessidade de autoprojecção em símbolos de riqueza de modo a revelar uma transformação de estatuto. No primeiro caso, há uma deslocação da luz para a sombra, entendendo-se a luz como o reconhecimento intelectual de Kropotkine pelos seus pares e a sombra como o anonimato a que se votou através de um pseudónimo; no segundo caso, o sentido da deslocação é da sombra para a luz – representando agora a sombra a pobreza e as dificuldades económicas e a luz a materialização de um esforço. Em ambos os casos, o jogo entre luz e sombra está assente numa metáfora existencial da evolução humana e das variações que esta pode inflectir para atingir determinados e pontuais objectivos.

Período de Máximo joga não apenas com a luz, mas com o tempo. Esta relação tempo-luz evidencia-se no próprio título da exposição: refere-se ao período de tempo (período de máximo solar) em que a exposição ao sol é particularmente perigosa. E a artista cria paisagens de resguardo da luz e do tempo e, simultaneamente, de exposição de uma tensão entre os aspectos formais que as compõem: a casa que o emigrante constrói em lugar de destaque, está afinal isolada e descontextualizada, integrando-se entre elementos de exagero e contradição; a luz apagada de Piotr está afinal abandonada junto a um muro solitário e recôndito; Boronide ganha vida num néon ‘colado’ numa fachada em construção, artifical e cruamente iluminada. Os elementos ausentes das imagens são evocados por meio de uma artificialidade sugestiva: a liberdade de auto-representação está, no final, sempre condicionada a uma justaposição entre interior e exterior.


[1]  Piotr Alexeevich Kropotkine, “A Moral Anarquista”, Lisboa: Edições Sílabo, 2006.

Gisela Leal2007


Fotografia: Blues Photography Studio